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Breve relato de uma vivência na ditadura

Foto 1 - Apresentação de Ignez Maria à imprensa nacional e internacional, no Palácio da Polícia, em Porto Alegre

Foto 1 - Apresentação de Ignez Maria à imprensa nacional e internacional, no Palácio da Polícia, em Porto Alegre

Fonte: Correio do Povo, abril de 1970

Ignez Maria Serpa Ramminger

Ignez Maria Serpa Ramminger
Médica Veterinária, Mestre em Planejamento e Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde (ENSP/Fiocruz), aposentada da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre - Associada da Astec.

Naquele dia, ao sair para comprar pão e leite no armazém da esquina, deparei-me com uma baita barricada e um monte de soldados armados. Ocorre que morávamos na Venâncio Aires, próximo ao Colégio Militar e ao quartel da Olavo Bilac. Era manhã do dia dos bobos, 1º de abril de 1964.


Meu primeiro pensamento foi com a segurança de meu tio Ulisses Villar, que era dirigente estadual do Partido Comunista Brasileiro. Ele morava em Uruguaiana. Dias depois, soube de sua fuga de barco, pelo rio Uruguai.


Completei 15 anos de idade em maio daquele ano e o golpe militar causou a maior decepção de minha adolescência: a impossibilidade de ir estudar na União Soviética, conforme havia combinado com o tio Ulisses. Estava estudando russo, pois pretendia partir no final daquele ano, após concluir o curso ginasial (equivalente ao último ano do ensino fundamental atual).

Durante os dois anos seguintes, fiz algumas viagens de trem Minuano até Uruguaiana e de lá pra Livramento, onde cruzava a fronteita pra encontrar com o tio. Voltava trazendo cartas e livros escondidos em saco de viagem cheio de bolacha uruguaia. Ninguém desconfiava de uma guria mirradinha. Fui "pombo-correio" nesse período e me sentia importante ao realizar essa tarefa.
 

​Consegui também resgatar alguns livros que o tio havia enterrado no quintal de sua casa, antes de fugir na madrugada do dia 1º de abril. Após cada uso, sempre os mantinha escondidos. Anos depois, eles sobreviveram ao confisco, realizado pelos agentes da Delegacia de Ordem Política e Social, o DOPS, de todos os meus livros de filosofia, história, sociologia, economia, entre outros. Os livros eram extremamente preciosos para nós que contestávamos o sistema capitalista e a ditadura militar e, para mim, ainda o são. É bom lembrar que naqueles tempos vários autores e títulos eram proibidos e dificílimos de encontrar.

Durante o período em que cursei o Científico, não participei do movimento estudantil secundarista porque estava como "pombo-correio" e não podia chamar a atenção da repressão. Foi nessa época que me joguei, pela primeira vez, das alturas e deslizei pelo ar como os pássaros. A sensação de liberdade é indescritível e inesquecível. Uma colega do colégio e eu fomos pioneiras na prática do paraquedismo feminino gaúcho.


Porém, a liberdade vivenciada no esporte era inexistente em outros espaços. Vivíamos em pleno regime ditatorial. Havia apenas dois partidos políticos (um dizia "amém" e o outro, "sim senhor") e o campo da esquerda estava sufocado. Não havia espaço de expressão política e a sociedade civil ignorava o que se passava nos "porões da ditadura", preferindo acreditar na política econômica do chamado "milagre brasileiro", cujas consequências – concentração de renda/terras e aumento da dívida pública – permanecem até hoje.


Em 1968, ingressei na Faculdade de Medicina Veterinária da UFRGS e, consequentemente, no movimento estudantil universitário. Participei do Movimento Universidade Crítica (MUC) do Partido Operário Comunista (POC), que era clandestino.


Na época, havia uma intervenção no Diretório Central de Estudantes (DCE) da UFRGS e seu presidente era indicado pelo reitor. Então, os estudantes criaram o DCE-Livre, com eleições de sua diretoria. No segundo semestre de 1968, participei da chapa do MUC e fomos eleitos.


Nesse mesmo período, constituímos um grupo de estudantes da área da saúde (odontologia, medicina e enfermagem) e da agronomia e veterinária. Elaboramos um projeto piloto interdisciplinar de prevenção à saúde da população da Vila Mapa. Esse projeto previa ações de assistência e educação à saúde e ambiental, assim como produção agrícola e criação de aves e, ainda, o convívio com animais de estimação. Já tínhamos uma visão de promoção à saúde, bem anterior à incorporação desse conceito pelo futuro movimento da Reforma Sanitária, ao fim dos anos 70. Infelizmente, não conseguimos implantar todas as propostas porque o prefeito nos proibiu de continuar trabalhando na vila. Fomos tachados de "subversivos".


No segundo semestre de 1969, houve uma das últimas passeatas do movimento estudantil. As passeatas sempre terminavam no Largo da Prefeitura, porque ali na rua Uruguai ficava o Consulado Americano. Como de costume, à época, fomos encurralados e barbaramente espancados pelos brigadianos. Nesse dia, corremos, eu e mais três estudantes, para dentro de um edifício na Uruguai. Subimos correndo pelas escadas, por não sei quantos andares, até encontrar um escritório que estava em reforma e não tinha porta. Entramos e encontramos uma escada de pintor com a qual conseguimos descer para o telhado do prédio ao lado. Lá de cima, víamos a pancadaria. Tivemos que nos deitar de bruços sobra as telhas porque começaram a dar tiros. Não sabíamos de onde vinham os tiros, apenas sentíamos as balas cruzando sobre as nossas cabeças. Não sei quanto tempo ficamos lá. Esse incidente, para mim, foi a gota d'água e levou-me a optar pela luta armada contra a ditadura.


Em outubro de 1969, ingressei na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Ao escolher meu “nome de guerra” ou codinome, homenageei uma empregada doméstica, negra, que havia trabalhado com minha família. Esse nome ainda me acompanha e muitos companheiros(as) das novas/velhas lutas ainda me chamam por ele: Martinha.


Na organização, participei de treinamento militar, como: sobrevivência na selva, tiro ao alvo e táticas de guerrilha urbana. Nossos treinamentos, em geral, ocorreram às margens da Lagoa dos Patos, porque era pouco povoada e os tiros não chamavam a atenção. A VAR-Palmares estava se estruturando aqui no estado e algumas ações foram realizadas apenas como treinamento. Foi o caso da expropriação da agência do Banco do Brasil, em Viamão. Essa ação foi comandada pelo Edmur Péricles de Camargo, que tinha um grupo chamado M3G-Marx, Mao, Marighela e Guevara.


Após a ação na agência do Banco do Brasil de Viamão pela VAR- Palmares e da tentativa de sequestro do cônsul americano pela VPR, fomos presos, em abril de 1970, no período mais duro da repressão política – governo Médici.


Fui presa em casa. Tinha 21 anos de idade. Fui barbaramente torturada, na maioria das vezes, junto com o Gustavo Buarque Schiller e o Francisco Martinez. Eles torturavam o Gustavo na minha frente para me fazer falar e vice-versa. Fiquei um ano presa e dois anos com liberdade vigiada.


Foi a crença profunda na possibilidade de construir um mundo mais justo e solidário que me deu forças para resistir àquela situação extrema, limite. Ao sair da prisão, concluí a faculdade, casei, tive filhos e continuei a lutar contra os grilhões que nos aprisionavam e aprisionam ainda.


Quando fui julgada, em 1973, minha filha Tatiana tinha 20 dias de vida. No final daquele ano, mudei para o Rio de Janeiro, onde morei até 1988. Durante esse período, participei de vários movimentos: Reforma Sanitária, que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS); Comitê Brasileiro pela Anistia; Comissão de Recepção aos Ex-Presos e Exilados Políticos; sucursal do jornal Em Tempo; e Movimento pró-PT.


Em 1992, ingressei na Secretaria Municipal de Saúde (SMS), por meio de concurso público. Fui aposentada, no ano passado, por ter completado 75 anos de idade.

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Artigos | Revista da Astec, v. 24, n. 52, agosto 2024.

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