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As cidades falam. E os gestores, sabem conversar com ela?

Este artigo convida a uma reflexão sobre a importância dos processos de comunicação produzidos pelas administrações públicas brasileiras e o papel dos servidores em sua relação direta com o cidadão, visando contribuir com o debate sobre a gestão de sua qualidade e eficiência.


Fernando Biffignandi

Arquiteto, Departamento Municipal da Habitação (DEMHAB), Doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com Pós-Doutorado em Comunicação Pública pela Universidade de Coimbra (Portugal). CAU-RS nº 14.998-5 .


Cabe esclarecer que a comunicação de caráter público, aqui enfocada, não está voltada ao campo institucional, produzida pelas secretarias e seus departamentos oficiais, mas aquela presente nas ações diretas com o cidadão em seu cotidiano. Uma relação mais próxima e direta entre o cidadão e o ente público, por meio de seus canais de atendimento – que muitas vezes apresenta uma real idade diferente das belas imagens veiculadas na mídia, pagas com verbas publicitárias vultosas.




Partindo-se da premissa de que os administradores públicos são representantes eleitos pela população – logo desde a escolha de gestores, passando-se pelas políticas implementadas, até o processo de qualificação do corpo funcional – todo o processo tem a marca indelével de sua responsabilidade. Um compromisso com o interesse público, como bem define Duarte (2011), ao classificar o papel dos governantes como os principais indutores da comunicação pública e o seu dever constitucional de qualificar canais, através de meios e recursos que permitam o envolvimento de todos os cidadãos.


No Brasil, a obrigatoriedade da qualidade no repasse da informação pública, um patrimônio conquistado pela população, vem consagrado no Artigo V da Constituição Federal. Mais recentemente, a Lei Federal n° 13.460, de 26 de junho de 2017, regulamentou e normatizou a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços prestados direta ou indiretamente pela administração pública, instituindo as ouvidorias e ampliando a participação da sociedade no processo. Em Porto Alegre, o cidadão passou a contar com a Ouvidoria-Geral (Decreto n° 19.849 de 5 de outubro de 2017), vinculada à Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria (SMTC), com o objetivo de responder pelos serviços públicos prestados à população, suas reclamações, denúncias, sugestões e elogios.

Muitos esquecem ou desconhecem que, quando uma administração pública se dirige à sua cidade, ela responde! Basta saber ouvi-la, enxergar o seu retorno por meio dos indicadores e do gerenciamento, referendado pelo conceito da qualidade total no setor público. Tomando como recorte de análise os altos índices de reclamações (56,21%) publicados pela Ouvidoria-Geral de Porto Alegre é correto considerar-se que uma boa parte da reprovação da população quanto ao atendimento prestado pela administração pública está diluído entre os serviços oferecidos pelas diversas secretarias.


Porém, é igualmente importante compreender as razões pelas quais o grau de excelência esteja distante de ser atingido. A transparência nas informações serve exatamente para este fim e os resultados das pesquisas de satisfação reforçam a necessidade de examinar a questão sob o viés científico, tendo como base os referenciais teóricos, mas também pelo viés prático, percorrendo o cotidiano das cidades e (re)conhecendo a realidade de seus habitantes. Os dados expressos revelam apenas a ponta de um iceberg. Seguramente, dentre os percentuais informados estão reclamações quanto a trabalhos não executados (ou mal executados), descumprimento nos horários do transporte coletivo, problemas com a iluminação pública, falha no recolhimento do lixo ou outras demandas municipais que apresentaram deficiências ou imprecisões.


Mas, quantas dessas podem ter sido originadas pela ausência de uma comunicação correta, confusa, equivocada ou inexistente por parte do poder público? Quantos já não encaminharam sua solicitação em um determinado canal de informações, presencial ou eletrônico, no qual um simples esclarecimento poderia ter poupado tempo, antecipando etapas para a sua resolução? Este é o exemplo mais claro de que a cidade, representada por seus cidadãos, fala. Por vezes, ela não é compreendida ou não compreende os seus direitos e deveres, definidos pelas normas e legislações e, portanto, reclama.


A boa comunicação ainda é o melhor instrumento, capaz de aproximar a gestão administrativa e governamental da população, informando de maneira clara e transparente sobre os serviços prestados. Um dos preceitos basilares da comunicação reside nas duas vias da informação, seja pelo transmissor ou receptor. A ação dialógica da troca fortalece e realimenta o processo, como na recursividade do pensamento complexo evidenciada por Morin (2011), onde os produtos e os efeitos são reflexos do processo de forma concomitante, ou seja, quanto melhor o governante informar as suas ações aos indivíduos, mais fácil será a sua compreensão. Por conseguinte, o retorno positivo por parte daquele indivíduo será o elemento-chave que irá realimentar o processo da confiança nas ações do próprio governo para que o ciclo virtuoso se prolongue. Parece uma equação simples, afinal a informação é um instrumento benéfico, sobretudo, quando realizada com a transparência necessária, agregando um valor significativo à relação. A construção do conhecimento cresce nessa dinâmica onde os saberes técnicos e comuns se fundem em benefício da cidadania.


A eficácia do processo está em ouvir “as vozes da cidade” e buscar a aproximação com a sociedade, por meio da valorização e do reconhecimento do saber comum, no desenvolvimento de ações públicas e na aplicação de seus instrumentos legais. Que sejam consideradas a racionalidade e a precisão no repasse das informações técnicas ou legais, mas que não se abdique do relacionamento humano potencializado pelo diálogo, como o genuíno instrumento integrador de uma sociedade.


A legitimação da relação de um governo com a sociedade confere um padrão de confiabilidade de quem tem o dever de falar em nome do povo ou, como explica Zémor (2009), contribuir para a conservação dos laços sociais. O pensamento do autor reforça a relevância do compartilhamento da informação de forma responsável, a partir da premissa do ente público de construir uma relação perene de confiança com o cidadão, pela simples máxima de que “as empresas podem mudar de cliente, os órgãos públicos, não” (ZÉMOR, 2009, p. 197). As organizações públicas, como representantes constitucionais, têm o poder e o dever de interagir com a sociedade, qualificando seu corpo técnico e aperfeiçoando os seus procedimentos, para o cumprimento dos direitos do cidadão, de forma clara e transparente.

Nesse sentido, os estudos sobre a importância do Agir Comunicativo, proposto por Habermas (1989), ampliaram a possibilidade de articular o real sentido do esclarecimento com os novos caminhos para uma comunicação mais humana, menos instrumentalizada e mais subjetiva, respeitando a capacidade e as competências de cada indivíduo.

Consequentemente, a qualidade na comunicação deve preconizar a utilização de uma linguagem clara e compreensível, a fim de captar as necessidades de seu público-alvo – em outras palavras, o cidadão. O seu atendimento deve pressupor uma comunicação simples e adequada, por vezes diferenciada, àquela linguagem normalmente empregada, impondo a necessária aceitação de códigos e símbolos para a manutenção dessa relação. Para tanto, é preciso conhecer as características das diversas regiões e bairros para absorver seus conhecimentos de vida, associada e partilhada com o conhecimento técnico, gerando um novo e verdadeiro produto de competência coletiva, mas que preserva, em sua essência, as suas individualidades formadoras.


De outra parte, a evolução tecnológica e suas aplicações tornaram possível ampliar a difusão da informação pela internet, facilitando o acesso a um grande número de brasileiros, a partir das redes sociais – uma ferramenta disponível e com grande penetração, que agrega qualidade na aplicação dos processos, oportunizando ao gestor público ações inovadoras e interativas na sua relação com os diversos segmentos da sociedade, fundamentais para a promoção social da cidadania. Cabe extrair com sabedoria, dentre os números negativos, quais dados são importantes para a necessária correção dos procedimentos adotados. Interpretar as críticas corretamente ao invés de comodamente aceitar o rótulo histórico de que o problema está na incompetência do servidor público. Nesse sentido, é sempre importante recordar a existência de uma parcela significativa da sociedade que critica o desempenho dos servidores públicos, classificando-os como desinteressados, acomodados e, até mesmo, incompetentes, esquecendo-se de que não são eles que redigem as leis. Eles apenas as cumprem. As suas ações serão sempre o reflexo das políticas públicas implementadas pelos gestores que a própria sociedade outorgou por meio do voto para representá-los.


Logo, os críticos à máquina administrativa, dentro da proclamada modernização regida por metas e indicadores, não podem se omitir de cobrar de seus gestores minimamente duas ações importantes: a criação de políticas públicas que promovam e facilitem o relacionamento com o cidadão; e o necessário investimento na qualificação dos servidores, que enfrentam no dia a dia a experiência de “falar” em nome de projetos definidos pelos próprios governos. Parece injusto aceitar que as críticas de uma má administração sejam colocadas sobre as costas do servidor público, justamente aquele que ocupa o último elo da corrente entre os governos e o cidadão.


Por fim, a conclusão de que somente será possível conversar com a cidade ouvindo aberta e proativamente as suas insatisfações, expressas no relacionamento direto ou pelos indicadores das pesquisas. Cabe aos gestores públicos trabalharem na adoção de uma comunicação mais inclusiva, fortalecida pela construção de ações que prevejam o respeito às diferenças culturais, saberes e práticas, presentes na identidade de cada um dos seus cidadãos. A compreensão de que a melhoria nos indicadores depende da aproximação com os seus cidadãos, cujo sentido de interação transcende o espaço físico, composto pela geometria urbana e territorial, se concretizando pelo respeito com a vivência cotidiana de cada indivíduo.


REFERÊNCIAS


BRASIL. Lei Federal n° 13.460, de 26 de junho de 2017. Dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública. Diário Oficial da União (DOU): Brasília, DF, 27 jun. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13460.htm . Acesso em: 15 mar. 2020.

DUARTE, Jorge. Sobre a emergência do(s) conceito(s) de comunicação pública. In: KUNSCH, M. M. K. (org.). Comunicação pública, sociedade e cidadania. São Caetano do Sul: Difusão 104. Comunicação pública: interlocuções, interlocutores e perspectivas. Editora, 2011.


HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.


MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4 ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.


PORTO ALEGRE (RS). Decreto n° 19.849 de 5 de outubro de 2017. Institui a Ouvidoria-Geral do Município, subordinada a Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria-Geral (SMTC) dispondo sobre o seu funcionamento. Diário Oficial de Porto Alegre (DOPA): Porto Alegre, 9 out. 2017. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a1/rs/p/porto-alegre/decreto/2017/1985/19849/decreto-n-19849-2017-institui-a-ouvidoria-geral-do-municipio-subordinada-a-secretaria-municipal-de-transparencia-e-controladoria-geral-smtc-dispondo-sobre-o-seu-funcionamento?q=19.849+ . Acesso em: 20 fev. 2020.


PORTO ALEGRE (RS). Relatório Anual da Ouvidoria de Porto Alegre – 2018 conforme Lei nº 13.460. Porto Alegre; Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria. Ouvidoria-geral do Município de Porto Alegre/RS, 2019. Disponível em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smtc/usu_doc/relatorio_anual_de_ouvidoria_2018.pdf . Acesso em: 20 fev. 2020.


ZÉMOR, Pierre. Zémor fala sobre comunicação pública na ENAP. Revista do Serviço Público: ENAP, Brasília, n. 60, p. 197-200, abr.-jun. 2019. Disponível em: http://seer.enap.gov.br/index.php/RSP/article/viewFile/22/19 . Acesso em: 15 mar. 2020.



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